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'Tem que ter estômago': psicóloga 'espiona' papo de homens em app

Valeska Zanello estudou grupos de WhatsApp durante 6 meses e revelou piadas com feminicídio, pornografia e tabela de pontuação para mulheres

Viva a Vida|Nayara Fernandes, do R7

Segundo pesquisadora, conversas envolviam piadas e objetificação de mulheres
Segundo pesquisadora, conversas envolviam piadas e objetificação de mulheres Segundo pesquisadora, conversas envolviam piadas e objetificação de mulheres

Durante um período de seis meses, a professora do departamento de psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Valeska Zanello contou com a ajuda de seis homens que se voluntariaram a espionar os grupos de WhatsApp dos quais já participavam. A ideia era descobrir como esses homens, entre 25 a 60 anos pertencentes às classes média e alta, performavam masculinade entre grupos fechados. Em outras palavras, como pensavam e agiam os homens longe do olhar feminino.

Segundo Zanello, que é doutora em psicologia e atua com pesquisas sobre gênero há 13 anos, “tem que ter estômago” para ler os 634 prints recebidos: piadas com as partes dos corpos de mulheres, dicas de como mentir para a esposa e até memes sobre feminicídio foram alguns dos conteúdos encontrados. De acordo com a pesquisadora, o comportamento mais frequente é o de objetificação feminina.

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“Desde crianças, os homens aprendem uma única forma de estar com mulheres, que é através da objetificação”, explica. “Isso demarca uma hierarquia: eu transformo o outro, que é um sujeito, em uma coisa, ou pedaços de coisas, como uma bunda ou um peito”.

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Mulher: objeto de escárnio e avaliação

Dentre os inúmeros exemplos que dá, Valeska conta ter recebido um print de um grupo de advogados no Pará cuja foto de perfil mostrava os seios de uma colega que havia se relacionado com um dos participantes. Além do compartilhamento de pornografia, o escárnio com mulheres fora do padrão também é comum. 

Tabela de pontuação categorizava mulheres durante carnaval
Tabela de pontuação categorizava mulheres durante carnaval Tabela de pontuação categorizava mulheres durante carnaval

“No Dia da Consciência Negra, circulou em todos esses grupos a mensagem 'apoiamos a Consciência Negra' com imagens de partes íntimas de mulheres negras anexadas. Elas também são ligadas à ideia de pobreza, que serve como escárnio.”

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A objetificação sexual é, segundo a pesquisadora, “de forma disparada o assunto mais frequente em todas as esferas”. Ao se discutir a esfera política, por exemplo, também há um comportamento de zombaria com as mulheres representantes.

“As que não são considerada ‘gostosas’ são ridicularizadas, em geral pela gordura, a velhice e a cor preta. Dilma Roussef, Benedita da Silva e Joice Hasselman eram figuras de escárnio bem frequentes por serem consideradas fora do padrão.”

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Nas época do carnaval, a pesquisadora conta que chegou a receber dos grupos uma tabela de pontuação que caía caso os homens ficassem com ex-namoradas, mulheres com deficiência, mulheres acima do peso ou mais velhas. Uma ideia frequente é de que as mulheres mais velhas e gordas são objeto de desejo somente quando não resta mais ninguém com quem ficar. “Havia muitas piadinhas de que ficar com uma mulher velha seria um favor, afinal ela está em uma posição ruim.”

Também autora do livro Saúde Mental, Gênero e Dispositivos, no qual discute as queixas femininas na esfera amorosa, Valeska Zanello compara a posição das mulheres a uma espécie “prateleira emocional” submetida ao olhar masculino.

“Quanto mais longe do padrão estético branco%2C magro e jovem%2C pior vai ficando a posição das mulheres nessa prateleira. Já os homens servem como os grandes avaliadores morais dessas posições.”

(Valeska Zanello)

Silêncio na “casa dos homens”

Mesmo trabalhando com voluntários para receber os prints de conversa, a pesquisadora conta que havia uma preocupação dos participantes em esconder o nome e imagem dos homens expostos. De acordo com Valeska, o comportamento de proteção é bastante comum em rodas masculinas. Ela toma como exemplo o pesquisador francês Daniel Welzer-Lang, que criou a metáfora “casa dos homens” para definir como se os códigos das relações masculinas.

“É como se os homens que já atravessaram a porta da casa tivessem o papel de testar os que ainda estão entrando. A grande argamassa afetiva da casa é a misoginia, ou seja, o repúdio por mulheres.”

Em outras palavras, para ter a avaliação e aprovação de seus pares, “o homem de verdade” deve ficar se afastar de tudo o que for considerado parte do universo feminino.

Para Valeska, o grande desafio dos homens na atualidade não é “subir no palanque” para defender os direitos das mulheres, mas confrontar seus iguais nas práticas machistas mais básicas.

"O que rege a casa dos homens é a cumplicidade. Se você não diz nada para seu amigo que não paga pensão ou não lava louça em casa%2C você é cúmplice.

(Valeska Zanello)

Mulher morta, motivo de riso

Homens fizeram piada com morte de Eliza Samúdio
Homens fizeram piada com morte de Eliza Samúdio Homens fizeram piada com morte de Eliza Samúdio

No 5º país mais violento em morte de mulheres no mundo, o feminicídio também é motivo de escárnio entre os grupos masculinos de WhatsApp. Entre as piadas mais frequentes recebidas por Valeska, estava a foto dos cachorros do ex-goleiro Bruno, condenado pelo assassinato de Eliza Samúdio em 2010, segurando duas bacias de comida. Na legenda, a frase “Bruno está de namorada nova”.

Para sua próxima pesquisa, Valeska também está recebendo prints de imagens relacionadas à pandemia. Segundo ela, a ideia de que as mulheres inventaram o coronavírus para manteres os homens dentro de casa e a fantasia de matar a esposa durante o confinamento também são piadas frequentes.

E mais: Sem lugar seguro: quarentena expõe crise de violência doméstica no país 

“Quando falamos em violência, sempre falamos da população alvo, que são as mulheres, nunca pelo vetor, os homens. Tendo em vista que os grandes vetores da violência no Brasil são os homens — não só pelos índices de feminicídio, mas violência doméstica, homicídio e até contaminação por covid-19 — refletir sobre masculinidade deveria ser considerado uma demanda de saúde pública no país.”

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